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Ensaio Reticom

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quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Utopia minha

Minha utopia é meu recanto,
                   é meu sossego.
Onde eu canto, 
        me aconchego. 
É lá que me perco, me permito,
             me envergonho e me esqueço.
Minha utopia me move, me transporta
                    me comove, me revolta.


É meu lugar nenhum em meio ao mundo todo
É todo meu mundo neste lugar nenhum de todos. 


Minha utopia existe em mim, e em mim eu levo onde for.
Te empresto. 

Só até teu canto algum estiver pronto pra te receber.
Depois, tomo de volta, com saudades de me perder.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Anas

Juliana
Mariana
Silvana
Julia, Maria e Silva nos braços de Ana.

Emiliana
Cristiana
Eliana
Emílis, Cris e Elis como Ana quis.

Tatiana
Adriana
Luciana
Tati, Adri e Luci, sem Ana nunca vi.

Morgana
Diana 
Luana
Amor, dia e Lua... sempre Ana.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Deixaram de nascer Judas

O menino não entendia cada torção de boca ou espremida de testa que davam os adultos. Nem as mãos reativas que desciam pelo peitoral de suas crianças ou que as girava pelas costas levando-as ao seguro campo de força materna. Mas era momentâneo, logo passava... Passava para as crianças.

Judas não tinha amigos na escolas. Acostumou desde cedo com a solidão social, o que favoreceu seu silêncio, seu ouvir, seu observar e sua facilidade para se concentrar, destacando-o das demais crianças de sua idade. Judas se desligava de uma realidade limitada para adentrar ao seu mundo de descobertas e possíveis entendimentos. Tamanha era sua riqueza, sua amplitude vital... Que Ângela era chamada na escola com frequência. Ângela sempre discutia com a professora sobre a violência das atividades propostas numa sala fechada, como manter a continuidade de desenhos feitos por uma caneta esferográfica azul sob linhas retas, ou como as correções soam opressoras com seus grandes X's feitos com suas canetas esferográficas vermelhas. As reuniões terminavam com Ângela falando sozinha pelo corredor enquanto a professora mantinha uma expressão sem esperança; ou com Ângela sentada em frente a mesa da diretora mantendo uma expressão sem esperança. Já familiar ao local.
Em casa, Ângela motivava Judas a ser criança brincando na lama do jardim, desenhando o chão e as paredes com tintas pelo corpo, comendo frutas com as mãos e cascas antes do banho. Judas usava toda a energia contida na escola, já que esta bem colaborava com a privação de seu desenvolvimento e, ainda, o diferenciavam pelo nome. Ângela recém perdera na justiça o direito de matricular seu filho em uma escola após os seis anos de idade, sob o julgamento de abandono intelectual e argumentos de interesses estatais. Mas Judas ia bem! Apesar de seu precoce enfrentamento político-social, Judas mantinha sua curiosidade pelo mundo com questionamentos inimagináveis aos limites escolares.
Ângela sempre soube de algumas consequências quando decidiu por Judas:

- Quanta bobagem!!

Respondia aos familiares e amigos que a instigavam à uma discussão inútil, numa falsa liberdade embasada por conceitos históricos prontos. Ora, Judas fora também um santo naquela mesma história. Os julgamentos vieram à pedradas quando souberam que a gravidez foi impensada. Mulher solteira, quase promíscua, com filho sem pai e de nome Judas!?!. A culparam por condenar seu filho com este nome, por seus pecados carnais. Ângela rio alto quando ouviu esta possibilidade na cabeça de D. Marta pela primeira vez. Mas já não sorria com os demais:

 -Se Jesus perdoou seu Judas, e eu também hei de perdoar o meu!

Em tom de brincadeira, Ângela encerrava a conversa com muitos que assim encerravam a relação.
O fato é, que seu afeto crescia pelo feto que afetou sua vida. E a certeza de seu nome crescia em cada conversa. Ninguém na história havia afetado tanto ao redor ainda em feto.(!!)
Por vezes Ângela chorou em silêncio o peso do mundo em suas costas, e o peso da moralidade empurrada às costas do filho. Algumas vezes arrependia-se do nome sem batismo, mas arrependia-se por isso quando olhava Judas nos olhos. Aquele par de olhos castanhos exibiam um horizonte pleno e o gosto ímpar que a vida oferta àqueles que se arriscam a viver.
Judas e Ângela percebiam que o afastamento das crianças originavam em seus pais, pois nunca Judas perdera um colega antes de fazer parte dos contos infantis que empolgavam a comunicação com os adultos. Até seus nove ou dez anos, algumas crianças até contavam que era melhor não brincarem juntos. Daí aos quatorze, quinze as recusas já partiam dos próprios estudantes, por meio de frases ofensivas que o faziam traidor, não confiável aos mais inseguros.

- Por que sua mãe te chamou assim?

Iara era uma menina sensível, de uma confiança assustadora aos olhos de Judas. Quando uníssonos escolares os acusavam de namoro, Iara pegava na mão de Judas e se retirava como uma adulta:

- Vê se cresce!

Judas não gostava dos rumores, mas nunca hesitou em saltar daquela rocha. Iara o confortava, permitiu conhecê-lo como se não conhecesse outro Judas. Não namoravam, mas eram melhores amigos.
A pergunta de Iara veio a tona, interrompendo o jogo no vídeo-game antigo da menina. Se Iara ficou sem resposta, Janaína conseguiu saciar sua curiosidade numa boa conversa entre mães, regada a vinho tinto na cozinha ao lado.

- Judas é um nome forte. Independente da história, pra mim... Não deixaram de nascer Charles apesar do Maison, nem Guilhermes apesar do De Pádua... E ainda assim, foi o peso da história que me motivou a escolhê-lo. Em um intervalo de mais de dois mil anos, parece que meu Judas confirma sua singularidade.

Entre vinhos e risos, Janaína falou sobre a origem de seu nome e da filha Iara, chegando à sua relação com algumas religiões pagãs e o moralismo cristão. E riram, muito e alto, quando, já lavando a louça, lembraram da possível origem do nome de Ângela.

-Anjos caretas!  

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Julia e Lúcio, entre outros

Eles eram bons. Um casal, aos olhos comuns, tão ordinário quanto a patética mesmice social propõe.
Entre eles, não. Nem Julia, nem Lúcio, buscavam no outro o ser encantado e perfeito que carregasse suas felicidades eternas. Pura ladainha! Buscavam pessoas que os fizessem melhores, que colaborassem com a dura encarada daqueles defeitos profundos, que insistem em aparecer nas horas desconfortáveis. Julia e Lúcio acreditavam no amor amplo, de gaiola aberta sob grama vasta, entre flores suculentas.
Julia e Lúcio se conheceram num curso qualquer. Depois se reencontraram no museu do centro da cidade e de lá, decidiram tomar um sorvete. Sem lactose, para ambos!
As coincidências iam colaborando para que a singularidade de um, esbarrasse nas esquisitices do outro. Logo de cara, o assunto dos dois viajaram o tempo para que conseguissem falar e compreender as palavras, sob os mesmos conceitos, e lá na raiz etimológica da questão, escapavam risadas e questões muito pessoais, que fizeram mostrar um ao outro muito além das roupas sobrepostas e tatuagens indígenas em exibição popular. Tudo fazia ainda mais sentido naquilo que cada um se propôs a ser à si mesmo.
Julia e Lúcio moram juntos há dois anos. Numa casa antiga, no centro da cidade, onde o dinheiro pode pagar. Lúcio é professor, Julia florista. Ganham mal. Mas aprenderam sozinhos que a felicidade é um objetivo diário, não mensal, nem pra vida. E alcançam uma maior amplitude na alma, num botão que se abre ou numa questão esclarecida. Julia e Lúcio, de raízes fortes, fincadas à terra. Mas cabeças e braços que buscam o céu.
Fim de ano, e Lúcio descansa das crianças enquanto Julia se perde entre arranjos. Na sacada, ele observa as pessoas que, engolidas pela cidade, se entregam agora ao raro silêncio das ruas. Na ausência de carros, elas podem talvez ouvir o peso de suas solidões. De cara com uma cidade que não os enxerga, elas, agora, são seus únicos pertences.

- Ju, vamos compartilhar este fim de ano com as pessoas da rua?
- Que grande bobagem estas festas todas...

Julia largou sua tesoura no piso frio, e seguiu à varanda, deixando passos de terra pela sala. Carregava um prato de barro, com pétalas secas oriundas da limpeza do jardim. E lá, decidiram que celebrariam a solidão do casal com as pessoas invisíveis....
Era dia 24. Voltaram do mercado com dezenas de pacotes de macarrões sem ovos, (parafuso, que é mais fácil de comer) temperos, óleo e sal. Lúcio deixou Julia em casa, esvaziou a sacola e correu para pegar o fim da feira. Conseguiu cerca de seis quilos de tomate quase bons, por R$ 3,00. Tomates que seriam dispensados por caírem no chão, ou por terem sido amassados pelas mãos apressadas e rígidas de D. Maria. Tomates tão maduros, de vermelhos surpreendentes, pesados de tanto suco.
Julia bateu os tomates com sal, azeite e um copo de vinho. Acrescentou água para render. No antigo caldeirão, até então inutilizável desde que pertencera a numerosa família de Lúcio, ferveram água para coser toda aquela massa.
Às 20h abriram as portas da garagem vazia, só ocupada por duas bicicletas e vasos vazios, e posicionaram duas mesas na entrada. No caldeirão, a massa já com um fervente molho de tomate e folhas de manjericão espalharam seu aroma competindo com o cheiro de urina das calçadas. A batalha convidou homens e mulheres de rostos comuns, a perguntarem o que era aquilo tudo. Julia serviu um prato e ofereceu ao senhor de barbas brancas, unhas longas e grossas, que sorriu com poucos dentes.

- Pra mim?

Como comeu. Em alguns minutos a porta de Julia e Lúcio estava lotada de pessoas. Já não era o cheiro do molho que prevalecia, nem o sentimento de caridade. O odor de suor e urina ilustravam as conversas honestas e o sorriso sem graça do...:

- Acabou!

Nem por isso as pessoas sumiram. Julia e Lúcio sentaram na calçada e ouviram histórias comoventes. Pouco importava o que era verdade. Aquele momento era tudo real. De famílias ricas e homens perdido, da maldita da cachaça ao veneno confortável do crack, todos ali tinham suas histórias e a necessidade de compartilhar, de se sentir vivo.
Julia chorou de um lado, abraçando a mulher sem nome, cuja maça do rosto estava roxa. Lúcio ria com Sebastião, sábio nordestino que se recusava a voltar pra família humilhado pela metrópole. E entre momentos, ambos conheceram Rodrigo. Menino caiçara, de 23 anos e pele marcada. Olhos cansados de uma vida longa, de estradas solitárias. Rodrigo falava abertamente sobre seu consumo de pedra e a maldição de sua existência. De fala firme e voz rouca, se deixava enfurecer com qualquer piada ou ações desagradáveis de outros bêbados que dividiam a mesma situação de rua. Falava de Deus como se o conhecesse de perto, e sabia que "o retorno de Jesus está próximo". Exibia tamanha segurança, acreditando que tudo não passava de momentos. Momentos egoístas de pessoas do bem ou momentos bons de pessoas egoístas. Tudo fazia sentido em seu discurso, mas dividiu com o casal o peso da solidão:

- Na rua tem todo mundo. Todo mundo se conhece e pá. Mas é na hora de dormir que bate a solidão, ta ligado?!! Cara... é muito foda tá sozinho. Nem é o frio que pega, ou os bicho, a polícia, ta ligado?! É o receio de acordar sozinho de novo. Comê?... bom ou ruim nóis come, agora tê alguém assim, pra conversa mesmo, e um carinho e pá... é embaçado. - Sorrindo, sem jeito.

Rodrigou disse ao casal, que eles não faziam ideia do que era abrir os portões daquele jeito e ouvir as pessoas. Disse com certeza, de que, na maioria das vezes, mais do que comida e roupa, eles precisam mesmo é de ouvidos. Lembrar de quem são, perceber que estão vivos. Rodrigo confessou, já quando os fogos começaram e poucos restaram, que nem havia vontade de fumar a pedra que guardara para o "momento de Jesus". Eram quase 23h.

- É... agora é que as famílias troca os presente e tal. Dá abraço e senta pra comê. Daí eu já preparo minha pedra e vou de encontro com meu Salvador, ta ligado?!! É no colo Dele, estas hora, que dá pra segurar.

Passaram aquela meia noite juntos, os três. Com alguns cães que apareceram assustados pelas bombas, estavam em seis, sete. Rodrigo conhecia todos. Ou os nomeava assim que se aproximavam. Até que a noite silenciou. Rodrigo se despediu, agradeceu novamente e encheu o casal de palavras benditas. Seguiu, com quatro cães o seguindo. Julia e Lúcio entraram com dois dos cães que ficaram. Serviu-lhes água, comida e cobertor. Quase embriagados e em silêncio, deitaram sem trocar uma palavra.
Na manhã seguinte, os cães era o assunto. Xixi aqui, cocô ali, pêlos no ar e rabos abanadores. Julia e Lúcio reconheciam nos latidos a alegria de uma família. Decidiram ficar com o casal. Gárgula e Mandrágora.
Durante o café, Julia quebrou um silêncio cumprido compartilhando alguma fala de Rodrigo. Lúcio sorriu e confessou que não tirara o garoto da cabeça pela noite inteira. Julia apertou os olhos, num foco distante.

- Eu também não...

A semana passou e só dia 31 Julia parou. Gostaria de descansar para que pudessem festejar a noite. Aproveitar um ao outro, os cães, a casa, as flores...

- Podemos chamar alguns amigos.
- Todo mundo viajando...
...
- Vamos chamar o Rodrigo?

Silêncio.

- Será?
- Só ele. Vê se ele quer tomar um banho, comer na mesa....
- Tomar um vinho. Ficar mais de boa?!
- É. De repente ele nem fuma, de novo.
- Pois é... Será?

Lúcio correu pra sacada. Julia ficou pensativa.

- Ele ta por aí?
- Tá nada...

Julia levantou, amarrou o cabelo, pegou a bolsa.

- Vamos procurá-lo!!

Julia e Lúcio andaram pelos quarteirões vazios. Ouvia-se o vento. Conversaram sobre o que de tão especial sentiram com Rodrigo. Lembraram das outras pessoas, uns mais marcantes, outros tímidos, mas Rodrigo... O que havia naqueles olhos pequenos que se mantinha vivo no casal?
Julia e Lúcio passaram o réveillon sozinhos, e sob o efeito do vinho, conversaram honestamente sobre a vida e sobre Rodrigo. Estavam apaixonados. E inutilmente tentavam esclarecer que tipo de paixão era aquela. Necessidade patética comum às mesmices das relações sociais. Logo sacaram no outro que nada daquilo era necessário. Não importava o nome que se dava aquilo ou onde guardariam a ideia de uma nova relação com Rodrigo. Julia e Lúcio queriam mais daquele rapaz em suas vidas. Ninguém sabia como, nem porque. E isso não importava.