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Ensaio Reticom

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sábado, 4 de janeiro de 2014

Deixaram de nascer Judas

O menino não entendia cada torção de boca ou espremida de testa que davam os adultos. Nem as mãos reativas que desciam pelo peitoral de suas crianças ou que as girava pelas costas levando-as ao seguro campo de força materna. Mas era momentâneo, logo passava... Passava para as crianças.

Judas não tinha amigos na escolas. Acostumou desde cedo com a solidão social, o que favoreceu seu silêncio, seu ouvir, seu observar e sua facilidade para se concentrar, destacando-o das demais crianças de sua idade. Judas se desligava de uma realidade limitada para adentrar ao seu mundo de descobertas e possíveis entendimentos. Tamanha era sua riqueza, sua amplitude vital... Que Ângela era chamada na escola com frequência. Ângela sempre discutia com a professora sobre a violência das atividades propostas numa sala fechada, como manter a continuidade de desenhos feitos por uma caneta esferográfica azul sob linhas retas, ou como as correções soam opressoras com seus grandes X's feitos com suas canetas esferográficas vermelhas. As reuniões terminavam com Ângela falando sozinha pelo corredor enquanto a professora mantinha uma expressão sem esperança; ou com Ângela sentada em frente a mesa da diretora mantendo uma expressão sem esperança. Já familiar ao local.
Em casa, Ângela motivava Judas a ser criança brincando na lama do jardim, desenhando o chão e as paredes com tintas pelo corpo, comendo frutas com as mãos e cascas antes do banho. Judas usava toda a energia contida na escola, já que esta bem colaborava com a privação de seu desenvolvimento e, ainda, o diferenciavam pelo nome. Ângela recém perdera na justiça o direito de matricular seu filho em uma escola após os seis anos de idade, sob o julgamento de abandono intelectual e argumentos de interesses estatais. Mas Judas ia bem! Apesar de seu precoce enfrentamento político-social, Judas mantinha sua curiosidade pelo mundo com questionamentos inimagináveis aos limites escolares.
Ângela sempre soube de algumas consequências quando decidiu por Judas:

- Quanta bobagem!!

Respondia aos familiares e amigos que a instigavam à uma discussão inútil, numa falsa liberdade embasada por conceitos históricos prontos. Ora, Judas fora também um santo naquela mesma história. Os julgamentos vieram à pedradas quando souberam que a gravidez foi impensada. Mulher solteira, quase promíscua, com filho sem pai e de nome Judas!?!. A culparam por condenar seu filho com este nome, por seus pecados carnais. Ângela rio alto quando ouviu esta possibilidade na cabeça de D. Marta pela primeira vez. Mas já não sorria com os demais:

 -Se Jesus perdoou seu Judas, e eu também hei de perdoar o meu!

Em tom de brincadeira, Ângela encerrava a conversa com muitos que assim encerravam a relação.
O fato é, que seu afeto crescia pelo feto que afetou sua vida. E a certeza de seu nome crescia em cada conversa. Ninguém na história havia afetado tanto ao redor ainda em feto.(!!)
Por vezes Ângela chorou em silêncio o peso do mundo em suas costas, e o peso da moralidade empurrada às costas do filho. Algumas vezes arrependia-se do nome sem batismo, mas arrependia-se por isso quando olhava Judas nos olhos. Aquele par de olhos castanhos exibiam um horizonte pleno e o gosto ímpar que a vida oferta àqueles que se arriscam a viver.
Judas e Ângela percebiam que o afastamento das crianças originavam em seus pais, pois nunca Judas perdera um colega antes de fazer parte dos contos infantis que empolgavam a comunicação com os adultos. Até seus nove ou dez anos, algumas crianças até contavam que era melhor não brincarem juntos. Daí aos quatorze, quinze as recusas já partiam dos próprios estudantes, por meio de frases ofensivas que o faziam traidor, não confiável aos mais inseguros.

- Por que sua mãe te chamou assim?

Iara era uma menina sensível, de uma confiança assustadora aos olhos de Judas. Quando uníssonos escolares os acusavam de namoro, Iara pegava na mão de Judas e se retirava como uma adulta:

- Vê se cresce!

Judas não gostava dos rumores, mas nunca hesitou em saltar daquela rocha. Iara o confortava, permitiu conhecê-lo como se não conhecesse outro Judas. Não namoravam, mas eram melhores amigos.
A pergunta de Iara veio a tona, interrompendo o jogo no vídeo-game antigo da menina. Se Iara ficou sem resposta, Janaína conseguiu saciar sua curiosidade numa boa conversa entre mães, regada a vinho tinto na cozinha ao lado.

- Judas é um nome forte. Independente da história, pra mim... Não deixaram de nascer Charles apesar do Maison, nem Guilhermes apesar do De Pádua... E ainda assim, foi o peso da história que me motivou a escolhê-lo. Em um intervalo de mais de dois mil anos, parece que meu Judas confirma sua singularidade.

Entre vinhos e risos, Janaína falou sobre a origem de seu nome e da filha Iara, chegando à sua relação com algumas religiões pagãs e o moralismo cristão. E riram, muito e alto, quando, já lavando a louça, lembraram da possível origem do nome de Ângela.

-Anjos caretas!  

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