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Ensaio Reticom

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sábado, 29 de junho de 2013

Que seja bem vindo o caos

Medo de quê? Me pergunto dias depois de pensar em viver histórias que leio, de pessoas que admiro.
É sair na rua e trabalhar com pessoas, pela sociedade, para perceber que o medo já foi atropelado há muito tempo quando se encara o descaso. Quando se sobrevive aos escombros, o medo é no dia a dia, e não há tempo para que ele ganhe forças.
Meu medo foi engolido pela crença de que as coisas se mexeram, mudaram de lugar. Nada em seu devido lugar, mas há sinal de que o caos está vivo e ganhou corpo. E este caos precisa aparecer! Precisa incomodar aos que se sentem acomodados neste sistema inviável, desfuncional.

Teu cômodo conforta, mas o incomodado confronta.
Sem armas, sem destino, no sentido que esperança guia
Sem certo ou errado, quando se encara que sua fome é o certo social.
Se ninguém tem culpa, somos todos culpados.

Começa com um desvio de olhar, um atravessar
Uma grade, um alarme soa e cobre vozes,
Gritos e gemidos que a TV te explica.
Te confortando, aliviando, quase desculpando...

De olhos fechados e fone nos ouvidos,
Não há ainda o que tampe o nariz
Pois a desgraça da desigualdade tem cheiro
E empesteia tua feira, tua loja, teu caminho.

Mesmo sem querer incomodar, pois o normal já tem a pobreza
O crescente descaso gera massas que já pesam
Que desregulam esta gangorra suja e hipócrita
E quando quebrar, não terá distinção.
Estaremos todos no chão!


sexta-feira, 14 de junho de 2013

"Tem dias em que a gente se sente, como quem partiu ou morreu. (...) Ou foi o mundo então que cresceu?"

Ontem foi a primeira vez que senti medo. Medo da guerra quando entendida tão perto que se trata de vozes que clamam por justiça frente à uma parede estúpida de seres humanos manipulados e alienados, que não compreendem que esta batalha também é deles, pra eles, por eles. Massa de manobra, vítima do trabalhado alienante, a polícia agride de olhos fechados e coração acimentado. São como cães que vivem confinados, que passam fome, que sofrem agressões físicas e psicológicas e não entendem uma ação de carinho, de amor. Bater em pessoas que pedem o óbvio não faz o menor sentido! Quando eles deveriam estar nas ruas também, protestando contra seus baixos salários, a falta de acompanhamento psicológico, a falta de recursos materiais, a exposição à violência. Onde estavam contra o PCC em 2006, que mostrou quem realmente governa esta cidade? Não tinham a menor condição de guerrear contra os caras... Mas suas fardas viram a mão de deus contra estudantes, professores, índios, cidadãos! Cidadãos de cara limpa, armados de indignação e coragem.

Passei a noite em protestos e guerras. Minha cabeça não me permitiu descansar. Sonhei com bombas, fumaça, gritaria, sangue, escudos, flores, cimento, escuridão, buracos, medo. Acordei travada! Minha coluna, minha estrutura física foi abalada pelo choque psicológico. Perdi um dia de trabalho, com pessoas dispostas a compartilhar ferramentas de cura social e paz interna. Estou travada, perplexa, com dor, num buraco que do peito parece ter chegado ao outro lado. Dói quando respiro... Porque está difícil respirar com tanta fumaça, com tanta impunidade, com tanta vergonha! Minha estrutura não me traz segurança, está fragilizada, desestruturando...

Não se trata de uma semana de luta. Se trata de anos de injustiça e a primeira tentativa de respiro profundo e honesto depois que nos contaram que a ditadura militar havia acabado, em 1984. Se trata da primeira negação aos estúpidos bens material e o reconhecimento da falsa liberdade de escolha e expressão. Se trata do total entendimento social de que a democracia e seu significado tão expressivo nunca fez parte de nossa sociedade. Se trata de entender que a polícia é a mais grave classe trabalhadora afetada e manipulada por esta doença capital. Se trata de tirar da mídia o poder de informação, de comunicação pois vê-se agora, claramente, aos olhos de todos, quanta desinformação, mentira e despreparo formam esta classe de ego tão largo. Se trata da população entender seu força e assumi-lá. Que seja de consciência plena, pois seremos o buffet de grandes festas mundiais, e que nos lembremos que não há estrutura para tanta celebração. Não há animadores para estas festas, não há palhaços para entretenimentos vazios, não há mais espectadores de exploração, de riqueza esbanjada. Que não haja mais poderes fálicos engravatados estruturando nosso campo de ação. Que haja o povo, em plena ação de negação, de recomeço!

Parabéns aos moradores de São Paulo que abraçam a luta com suas participações individuais num coletivo que objetiva a integridade democrática.



quinta-feira, 13 de junho de 2013

Q.

Uma amiga me contava sobre os momentos em que perdera seus dois filhos e o marido. Dois assassinatos e uma morte em casa. A dor pesavam as lágrimas que não escorreram daqueles olhos vivos, escondidos pelo óculos embaçado, mas não devastou sua expressão em rugas, carregadas de vida e história, nem levou seu sorriso desacostumado daqueles lábios. Contou-me com uma força surpreendente sobre o filho assassinado a facadas na porta de casa, devido alguma briga com vizinhos. A indiferença da polícia em mais um caso na favela e a justiça torta da vida que levou o assassino ao encontro de sua própria morte quando tentou assaltar uma delegada. Contou-me sobre seu outro filho, que bebia muito e foi atropelado. Nenhum socorro ou sombra de justiça. Ele estava bêbado... Contou-me sobre o corpo morto do marido sobre o sofá, num mal súbito que não teve um nome que esclarecesse. Falávamos de murmúrios protestos que ninguém ouvia, ou ilustrava só mais um acontecimentos comum nas favelas de SP. Minha amiga falou tudo, com tanta força, para que pudéssemos apresentar mais um murmúrio de protesto cênico, concluindo uma etapa do nosso trabalho. Em uma semana, me preparei para encontra-la e revivia suas histórias, que de manhã, no ônibus, me violentaram o peito com muito mais agressividade do que nas palavras e nos olhos dela. Me refiz para encontrá-la, para trabalharmos com toda aquela honesta e desentendida indignação. Me refiz para juntar meu murmúrio ao dela, que vivia a indiferença e a dor da morte tão mais perto e tão mais forte. Minha amiga faltou ao trabalho, faltou no dia da apresentação pois seu outro filho fora assassinado na semana. Facadas e bebida! Meu abraço me aperta, me esmaga... meu abraço que é pra ela.
Nas ruas, nesta mesma semana, grande parte dos munícipes tomaram as ruas, motivados como gota d'água, pelo aumento abusivo das passagens do transporte público. Tomaram as ruas, enfrentaram o choque e são tratados como vândalos pela mídia que bebe das tristezas como as de minha amiga. Mídia que se alimenta da dor, da desgraça como o capitalismo se alimenta da desigualdade, da pobreza, da desinformação.
Frente a tudo, me questiono sobre o que é justiça. Como se faz ou se deixa fazer.