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Ensaio Reticom

Ensaio Reticom

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Virá!!

Virá uma geração de comunistas e anarquistas que resistirão aos impulsos sociais de instituir família sob uma relação monogâmica;

Virá uma geração que buscará a revolução dentro de sua própria realidade, buscando reestruturar as relações familiares a partir da empatia e da alteridade, como se deve ter com qualquer outro ser vivo;

Virá uma geração que entenderá que deus está nas manifestações do oprimido, no silêncio dos assassinados, e que paga penitência sob os chicotes de quem tem fé;

Virá uma geração filha da alienação e do egoísmo, que não mais acreditará no amor instantâneo, genético, de rótulos, produto pronto;

Virá uma geração que compreenderá a importância do outro na preservação da vida, do riso, do prazer e assim, conhecerá o amor e a liberdade;

Virá uma geração que entenderá a dor como passagem e como alarme para compreensões maiores, e anulará assim o sofrimento;

Virá uma geração que só conseguirá usufruir do trabalho presente, de produções compostas por seu próprio sangue e suor, negando produtos cujo trabalho não se viveu;

Virá uma geração que descobrirá o prazer ao calar o individualismo;

Virá uma geração que viverá a diversidade como cultura e o compartilhar como sociedade;

Virá uma geração que aceitará como teto apenas as estrelas e como alimento apenas o que brota;

Virá uma geração que louvará mais a terra que o céu, mais a vida que os santos;

Virá!


segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Água Corrente

Seu olhar apaixonado buscava o céu e se deparava com concretos cinzas, de uma imensidão material que condena, sem disfarces, qualquer relação com o subjetivo. Ainda assim, era possível sorrir. O que lhe tomava por dentro foi construído com aquele olhar vivo e negro em meio aos zumbis programados das metrópoles; aquela leitura ousada ao pé do ouvido, mesclada ainda, em outro espaço de tempo, com alguma reza cabocla cuja sonoridade lhe fazia contorcer as pernas, mesmo sem entender o significado das palavras. Aquelas vogais na voz rouca... E a barba. As barbas que já lhe roçaram o rosto, num misto de cócegas e prazer, que faziam um riso contido se perder num gemido solto... Sons agudos que lhe traziam à mente as peles finas dos pescoços femininos que seus lábios já tocaram.
Com as mãos plenas de sabão, se percebera apaixonada pela vida que lhe encontrava. Que lhe confrontava nos caminhos cotidianos quando as coisas pareciam perder o sentido. Lá estava a vida, com todo seu ar que envolve e abraça o corpo que se entende sem rumo, apoiado nas razões alheias, empurrado pelas urgências terceiras. Sentia que seu valor de vida estava nas manifestações das vidas que mostravam-se únicas, quando enxergavam-se ímpares frente ao todo. Excitava a percepção do outro se perceber único entre sete bilhões de seres humanos. Era isso que a encantava!
Sorriu de novo ao lembrar das mãos enrugadas das mulheres grandiosas, que reconheciam em sua mão, pequena e fina, a ausência do trabalho na terra, da colheita, da enxada. Que viam em seu corpo a escolha em não ser o corpo dos outros, seja como esposa, seja como mãe. Olhares fundos cujas cataratas exibiam a força das quedas, das águas, dos úteros, o sagrado das mulheres. Uma gota de água lhe escapou aos olhos... Como eram sacras e violadas as vidas das mulheres...
O quanto demora uma enxurrada, ao debruçar-se na terra seca, árida e morta, para fazer-lhe brotar de novo? Para curar as rachaduras das exigências, dos maus tratos? Que se soltem as mulheres! É preciso cachoeiras que hidrate a terra explorada, e só com esta união haverá sementes e brotos novos... Eis nesta analogia a liberdade que gozas! Mesmo como um fio de água em queda livre, as pedras, musgos, plantas e secas que estruturam seu caminho, te fazem água corrente.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

no meu tempo...

Sou do tempo em que...
liberdade não era conceito político.
Era sabedoria popular.
Família não era feita de tradição,
e seu desafio não era aceitar.
O amor vinha antes, e
só se chamava de família,
quando se conseguia aconchegar.
Sou do tempo em que...
o futuro não tomava lugar.
Se vivia o presente como um presentear.
Não se pensava em Estado,
Regras de governar.
Não tinha muros, grades ou cercas,
pois tínhamos todos a terra como lar.
Sou do tempo em que...
as crianças passavam a manhã no pomar.
Trepando em árvores, colhendo frutos,
Enquanto todo mundo adulto
Preparava o vinho pro jantar.
A força de trabalho não era forçada,
era o prazer de colher o que plantar,
de compartilhar vivências, de ter o que trocar.
Sou do tempo em que o tempo não tinha importância.
O sono vinha à noite, a chuva aproximava, o sexo celebrava!
Não havia militância, extravagância nem ganância.
Arte, plantas e sonhos era, entre tudo, o que mais brotava.
Nada dividia, separava... as diferenças eram o que apaixonava.
Num lugar ainda perdido, de sonos não dormidos, de desejos reprimidos
Desenvolvem estruturas do que ainda hoje se entende loucura.

sábado, 8 de novembro de 2014

Transição

Descobri, no afastamento, um mundo barulho.
Reclamações, sirenes, xingamentos...
Ninguém me parece feliz dentro do embrulho.
Me afastei, numa avaliação de mim, no todo, no mundo.

Não empreguei minha força de trabalho.
Mesmo não vendo a fuga como atalho.
Esperei meu instante inteira,
Para voltar e negar a prateleira.

Corri na chuva, depois da morte
Me senti molhada, em competição
Como o que antecede o embrião
Em busca do útero, esperando o corte.

Foi só uma sensação...
Entre minha vida e uma morte
Resumindo a toda pressão

Do que buscamos ter suporte. 

Bambas estruturas cálidas
Impulsivas, respeitosas...
Frágeis momentos sólidos
Decisivos, prazerosos...

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Não sinto só

Não sinto só... Sinto um acumulado de tudo que me cerca
Sinto expectativas como cercas
Nas quais não me permitem sair do lugar...

Não sinto só! Sinto uma avalanche de realidades
Entre as minhas e as outras
Que me acrescentam entre dor e novidades.

Não sinto, só... somente o que acho que é meu
Mal me percebo em tudo tudo que me faz
Em tudo que nem em mim existe,  mas me foi colado.

Não sinto só! Sinto mais um monte
Que me foi arrancado e proporcionado
Tirado e ofertado. Imposto e negado!

Não sinto mais... exceto no que me cobram
Em silêncio ou em contrato
Viver a vida num quadrado
Entre muitos que se desdobram.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

morte

A morte é o corte.
Deporta, conforta
Embola, consola
Corrompe, interrompe

A morte é o mote
De glosa, de prosa
De grito, de Rosa,
De vida proveitosa.
(ou horrorosa)

A morte é um ode
Afeta, de fato.
Conforta quem parte
No último ato.

A morte é a curva
A passagem que urge
O horizonte que surge
Quando a vida se turva.



24 de outubro, 2014

Vai fazer 12 horas que este dia começou. Da última semana, foi a quarta ou quinta noite que acordo de hora em hora, e meu chamado me faz pensar nos chamados noite adentro de milhares de outras pessoas. Mães com bebês recém chegados, mães cuj@s filh@s apresentam algum tipo de problema físico, psíquico, mental ou de comportamento. Algumas mães que eu conheço... Quando levanto perto das 4h, penso n@s trabalhador@s que estão saindo de casa... Minha cabeça tenta me confortar frente à minha necessidade de estar em pé, ajudando meu filho canino a se movimentar para beber água, fazer xixi ou mesmo para andar pela casa.
Com muito sono, levantei às 08h e pouco e me apressei para o curso. Momento sagrado de me aproximar de mim mesma. Caminhei pelo parque, entre as mudas de árvores e flores, deitei sobre as raízes grossas de uma árvore velha. As lágrimas vierem como chuva... e eu pude sorrir, com a gratidão de um flor seca.
Caminhei entre as plantações, observando @s trabalhador@s da terra, e abracei uma árvore, sussurrando pela consciência destes homens sobre a sacralidade de seus trabalhos, agradecendo meu privilégio em estar lá. Minutos depois, me sentei entre as flores e conversei com Silvio, que me expressou alegria e gratidão por trabalhar naquele lugar. Lugar de silêncio, de aroma, de respiro: "É o Paraíso, sem Adão, Eva ou a Serpente", disse ele. Ri, e juntos completamos: "Ainda bem!" Falamos n@s trabalhador@s das metalúrgicas, entre outras realidades usurpadoras, e agradecemos juntos, com as mãos na terra e os olhos no céu. Voltei a caminhar, agora voltando ao curso, à dança circular. Quando meu celular me traz a informações que meu filho canino não está bem... Minha bicicleta me fez voar entre tantas cores de flores para que eu pudesse estar aqui, ao lado dele. Niná-lo, acariciá-lo e ouvi-lo chorar... A velhice desencoraja a vida, se o corpo não atende à mente.
Não posso entendê-lo mais do que leio em seus olhos... e não quero precipitar e nem prolongar qualquer tipo de dor. Num dia confuso, a alegria da não rotina, me espreme entre a angústia e a gratidão de estar onde estou, de ser quem eu sou.
Ao tempo, peço que me conduza com paciência e amor à força de ser o que devo ser, e ao olhar que me faça enxergar o que contexto me exigir.
Que assim seja, com gratidão!
 

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Escolhas cotidianas. No capital.

"Quando a fome entra pela porta, a moral sai pela janela"
Cresci ouvindo esta frase, segui mastigando a ideia. Eu nunca passei fome, o que me permitiu questionar a moral que nos faz. Conceitos, ideias e caminhos postos. 
Penso que, de maneira geral, a fome deu lugar à outras necessidades criadas pelo modelo econômico e social que nos recebeu, entre a burguesia que nos cerca. Fome de ter mesmo! 
Nem de longe, venho questionar a necessidade fisiológica que mata e destrói milhões, quiçá bilhões, de vidas por todo o planeta. Não aqui! Mas refiro-me ao mundo micro que vejo e tateio ao redor. Inserido no mundo macro que se alimenta desta fome fisiológica, a miséria é explorada com sangue nos olhos daqueles que a transforma em capital.
Assim posto, reflito sobre a fome do ter. A fome da segurança, contra medos por todos os lados. E por medo de não ter, de perder, fechamos os olhos aos que não tem, nunca tiveram. Tudo parece distante no aconchego do lar. Não pensamos no trabalho escravo que produz nossos bens, já que este nos vem com muito suor e merecimento. Pois, como acima citado, respondemos ao mundo que vivemos e tateamos, não ao que acessamos esporadicamente.
Há quem se mobilize, num sentimento empático, por meio destes acessos esporádicos, e dentro da própria possibilidade real, faz o que se pode. Principalmente por já estarmos convencidos de que mudar o mundo é coisa de gente utópica, ideológica... insana. Falta pé no chão... ou conta pra pagar!
Estes acessos esporádicos, podem, por escolha, tornarem-se mais frequentes, mais efetivos. E vamos nos alimentando do apreender da história, do contexto. E vamos assim, nos percebendo parte do todo. E enquanto parte do todo, começamos a construir críticas. Criticas seguras, embasada em anos de pesquisa antropológica, sociológica, política.
Assim, com todo acesso e interesse e pesquisa, nos aproximamos da questão social e, muitas vezes, chegamos no questionamento do que nos alimenta. Do que procuramos nos alimentar. Na reflexão de: Temos fome de que? 
A resposta é relativa e, muitas vezes incerta. Mas quando ameaçada, buscamos pela segurança de garantir aquilo que nos formamos. E para defender aquilo que nos formamos, com muito esforço, e que nos identificamos, no momento de ameça, a moral e a ética caem facilmente para a teoria. 
O exercício de manter-se ético perante ao todo, provoca, quase que naturalmente, um enfrentamento frente ao todo. E em uma escolha que busca a complexa e relativa práxis da ética, só se tem ao lado os que assumem o risco de perder algumas estruturas tidas como básicas. O que nunca fácil, pois nunca uma escolha desta gera consequências só pra quem a fez. Leva tudo e todos ao redor. 
Mas a escolha, é sempre do individuo. Pronto ou não para as consequências. E penso que refletir sobre a práxis da ética requer consequências pesadas em escolhas solitárias, numa realidade macro onde a ética é prensada de acordo com a área (comercial, mercantil) que se apropria dela. Num todo que buscará sempre pela relatividade da ética para segurança e garantia de suas fome saciadas.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Reforma

Tem tanta coisa que...
Me cabe, me esfola, me soca, me choca
E reflito, repenso, regurgito e prossigo.

Tanta coisa que preciso...
resolver, aceitar, entender, acatar
Que respondo, silencio, continuo a andar.

Tem tanta gente que...
espera, não ouve, tenta e não faz
Mas aponta, reclama e finge que tanto faz.

Tem tantos caminhos que...
Nos cega, oprime, nos liberta da paz
Que escolher, às vezes, não nos parece capaz.

Tem tanta força que...
Enfrenta, supera, atropela e transforma
Quando a vida exige, a gente se deforma.

Se dá nova forma...
Reforma.
Informa.

Mas nego forma!
Refaço...




tempo...

tempo...
à venda!
Venda teu valor,
desvalora teu preço.

tempo escasso
vendido à carrasco
te sobra escarro
e ainda agradeço!

tempo vendido
a prazo, fudido
pergunto iludido
se ainda mereço...

A Posse Não Me Possui

A posse não me possui.
Posso pensar em ter, mas sempre me insiste o ser.
De que serve, se mal sei o que fazer...
Me sirvo do saber,
Da posse do apreender.

Questiono a posse quando vejo o poder
Sobe ao passo de não reconhecer...
E a força da posse existe até sobre o ser.

Entendo hoje a liberdade como a manifestação do ser sem posse.
Do poder ser inteiro, cujo objetivo é sintetizar,
tatear este sentimento subjetivo.
Não é preciso possui-lo. É preciso tê-lo em si.
Não é possível compra-lo. É possível percebe-lo.
Não é possível explicar. É preciso poesia na arte de amar.

Quando se relaciona amor à posse do ser
Não há ninguém que possa preencher.
O vazio é cavado por aquele que quer ter
E ignora a liberdade do ser, e de ser.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Pequena, quase, Helena.

Quando a menina chorava era o tormento que lhe acalmava o coração. Voltara da avenida com uma caixa de leite, e a menina que dormia sob a árvore gritava-lhe, fria. Envolvida numa colcha úmida, completava 32 dias de vida e uma força vocal invejável. Com dificuldade, ela abriu a caixa e molhou os dedos sujos no liquido ralo, levando à boca da criança. Envolveu-lhe em seu colo, entre os seios vazios e dormiu, antes da filha. Acordou com o frio, tomou um gole do leite e encarou a menina, que a cada noite parecia mais branca. Seus lábios roxos tocaram a face desmaiada, e se espremeram na busca inútil do calor da saliva.  Não dormia mais, pois era no silêncio que as dores se manifestavam. Doía-lhe o ventre, a vagina e outras partes entranhas que mal conseguia identificar, mas o sangue lhe garantia o erro. O sol tardou, mas aqueceu os corpos sobre o colchão escasso, pousado à grama e logo aqueles olhos pequeninos e castanhos despertaram. Caminhava entre os carros, sem nem mais o objetivo de trocados, não entendia mais quais eram as prioridades. Seu corpo retorcia por dentro, e o peso da criança aumentava; a luz do sol refletiu nos carros brancos e a cegou. Levantou uma das mãos, se protegendo da agressão, e no susto o grito lhe levou ao chão. Uma sombra rápida a acolheu e seu bebê não estava mais lá. Não estava no asfalto, não estava na grama e seu choro não lhe alcançava mais. Começou a gritar, mas não havia a quem chamar. Sua filha não tinha nome, e ela não tinha historia. Na busca, não lembrava mais se era a pedra ou o leite que esquecera no sol. Correu e chegando ao tronco que lhe dava abrigo, ouviu o gemido. Era seu bebê! Com o pequeno corpo, molhado de leite derramado, deitou ao sol, e se permitiu fechar os olhos. Transformava a barulho dos carros no som das ondas do mar. Era sua lembrança de maior aconchego. Seu marasmo foi interrompido por um grito estrondoso de um bebê incomodado, molhado de leite e de urina, entre trânsito e árvores sobreviventes, cólicas e fome e o desespero a abraçou novamente. E foi em seus braços que caminhou descalça, quilômetros, até que sua filha cessasse. Já não sabia mais voltar. Perdera seu colchão, seus chinelos e o que sobrou na caixa de leite. Sangrava entre as pernas quando cedeu o corpo numa viela quieta, atrás da caçamba. E com o lençol cheirando azedo, cobriu o rosto da pequena Helena ninando-a pra sempre. Seu dom de transformar trânsito em mar trouxe aos seus lábios secos uma canção que ouvira certa vez. E certa de amor e desesperança, cantou: “Dorme minha pequena, não vale a pena despertar. Eu vou sair, por aí afora, atrás da aurora, mais serena. Dorme minha pequena, não vale a pena despertar...”. 

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Nada a toa

Não é a toa,
que o passo é dado
que o mundo gira e
que o tempo voa.
Não é a toa
Que foi pro bicho
Que virei gente.
Hoje sou pessoa.
Não é a toa
Que pro homem
é garantido,
Pra mulher,
é ser patroa.
Não é a toa
Que nada é por acaso
Afinal,
são só escolhas.
Não é a toa
Que sou ateia.
Esperar por deus
já me atordoa.
Não é a toa
Que na minha mente
O que palavra entoa
Me soa entorpecente.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

... sempre cessa

Minha parte que se despediu... Deixou faltando um pulso.
Minhas páginas em branco, desenham tua ausência...
Meu lápis sem impulso, e a cadeira do outro lado da mesa.
Bebo as palavras, que não querem o papel. As engulo como comprimido, comprimindo... 
Aquelas que me redimiriam, mas são as mesmas que me condenaram. 
É quase abstinência, mesmo depois da overdose.
Meu escapismo! Numa sintonia rara com o Cosmos...
Nos levavam ao mar; aos encontros com os poetas na mesa de bar,
Até Marx e Engeals, num debate interminável com o corpo a marejar
Num ying yang dançante, desequilíbrio para reequilibrar.
Transformando o contexto, num tempo a nos esperar.
Não havia relógio, não havia chuva, não havia portas que nos fizessem parar... Era sempre o todo a nos compor. Os olhos no mundo, nossa dor. Os olhos na outra, era amor.
Aceito o que não me cabe controlar
Me dói quando não me resolvo no falar
Com ciência de que nada irá voltar
Na esperança neutra de um doce olhar... ainda não hoje.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Tribunal Tiradentes III - 18 Março, 2014

Acabei de chegar do tribunal. Um Tribunal Popular que, em seu veredito, condenou a lei da anistia aos militares torturadores da ditadura empresarial militar. Um Tribunal fictício, de valor legítimo e com a veracidade que só a arte traduz. Num palco cênico, de lutas políticas com personagens reais. Eu não tenho dúvida que foi um dos momentos mais emocionantes da minha história, ao unir meus sentimentos frente à liberdade paga e controlada da minha geração, frente à resistência em atuar na educação como arma intrínseca para mudanças críveis, em condições desrespeitosas e de nebulosa arbitrariedade alienante. Em união com lembranças de histórias próximas que ilustraram pela primeira vez este período à minha infância; de nomes desconhecidos de pessoas cujas histórias foram interrompidas violentamente, em um contexto que temo só de ler, ouvir, assistir... Sinto seus reflexos, mas minha pele e sanidade, ainda preservadas, não sentem o abismo sem fim, sem respostas e sem justificativas à este terror. Nossa história, enquanto cidadãos brasileiros, cidadãos deste mundo, deve ser lembrada e compartilhada com tatear, com olhar, com ouvir, sem a desdenhosa prática escolar, na qual tentaram me formar, ao passar por cima da história decorando datas e nomes de militares, reis e/ou imperadores. Os nomes das pessoas, enquanto povo, enquanto trabalhadores, devem ser repetidos, lembrados e investigados. As datas devem servir de orientações espaciais e de senso histórico, não devem ser respostas prontas para avaliações equivocadas de formação.
A história jamais se repetirá! Nos deparamos com suas consequências e alcanço a oportunidade de novas consequências aos que, em 30 anos, terão minha idade. Foi lindo ver gerações dividindo espaço, compartilhando histórias, alimentando sonhos, suportando a batalha, apoiando a resistência. O que há em mim hoje, dialoga com tudo que me permiti viver até então. E é com gratidão que sigo, que insisto e não desisto da justiça e do direito de se viver integralmente, com dignidade.
Sou mulher, atriz, vegana, feminista, educadora e acredito na emancipação e na autonomia empática como estrutura política. Esta emancipação se faz com a verdade. A verdade se chega com estudos, movidos à curiosidade e respeito.

domingo, 16 de março de 2014

Rotina

Maria tem câncer. Mas ela fumou.... fumou a vida toda, desde seus 11, 12 anos. Começou a beber cedo também, deixando a mente se perder entre as obrigações da fase adulta e as confusões internas e inúteis da adolescência. Teve que trabalhar cedo também, para ajudar em casa e pagar seus estudos. Estudos necessários para um emprego melhor, e uma vida melhor.
Maria tem 57 anos, acorda de segunda a sábado às 4h da manhã, faz café e deixa o almoço pronto, estende a roupa que lavou no tanque ontem as 22h., troca a água das gaiolas. Pega um ônibus pequeno e lotado até o trem, entra na fila na catraca por volta das 5h, chega na plataforma e segue a viagem a pé. Troca de trem, entra no metrô, segue na linha vermelha, até outra costura ferroviária para a linha azul. Viaja igualmente em pé com a sacola da marmita e sua bolsa de pertences. Depois da última baldeação, chega no trabalho por volta das 07h30. Troca de roupa, pois seu uniforme preserva suas roupas pessoais e a identifica sua posição no trabalho. Faz café, limpa as mesmas antes dos funcionários chegarem. As 09h30/10h. já terminou tudo e fuma seu primeiro cigarro do dia, no alto do prédio. Olha a vista, e agradece a deus por trabalhar na Av. Paulista! Pensa nos seus filhos, a saudade do marido recém falecido é criada pela culpa, que empurra a sensação de liberdade que a morte lhe entregou: "-Que Deus me perdoe!". Precisa correr! Desce, esquenta a marmita de alguns em banho-maria e a sua própria. Maria almoça as 11h., para não constranger os demais. Não tem fome e sua comida não está quente. Deixa sobrar arroz e feijão, só come a carne. Guarda a marmita, desce à calçada para mais um cigarro, tenta ligar para a filha mais velha, que não atende. "- Esta menina vai perder a hora de novo". Seu filho é motorista, não pode atender. Retorna aos escritório, aproveita os espaços de almoço para limpar tudo, esvaziar os lixos. Abre a porta do patrão maior bem devagar, depois de bater sem resposta. Aproveita ausência e capricha na limpeza. Acende um incenso como mandado, apesar de não acreditar que traga coisas boas, mas deus perdoa. Volta à cozinha, lava as marmitas, pratos e talheres usados. Passa um pano com veja no chão, e o café. Maria gosta quando é enviada ao banco ou correio para o escritório, se sente responsável. Passa a tarde nas filas, paga as contas e leva o troco com a responsabilidade privada do banco central. Agradece de novo. O relógio já acusa quase 17h. Maria pega uma revista e tenta ler sobre o artista da capa, que está em sua novela preferida. Mas o escritório não é lugar para coisas pessoais... Maria leva café às mesas, compra bolachinhas à alguns funcionários que lhe confiam o dinheiro. Às 18h. se veste, repousando o uniforme dobrado na cadeira, sob a mesa da cozinha, não sem antes cheirar e garantir seu uso para o dia seguinte. "-Amanhã preciso lavá-lo!" Maria sai do prédio, segue à estação de metrô e acende mais um cigarro. Mal da tempo de fumar... Entra na fila da catraca e quando chega sua vez, seu bilhete está vazio. Tenta sair, as pessoas xingam e empurram... Maria pede desculpas e assume a fila da recarga. 33 minutos depois, está em pé no trem, competindo os espaços escassos com jovens que descem antes dela. Os que estão sentados dormem e não percebem que ocupam lugares reservados. "Coitados, estão tão cansados". Maria troca de trem e chega à sua última plataforma. Desembarca e aguarda seu ônibus no ponto. Já é noite, quase 20h30 e Maria torce para não perder o começo da novela de novo...
Maria tem câncer. Pode tentar o tratamento a noite, já que não pode parar de trabalhar. Mas precisa deixar de fumar...

sábado, 15 de março de 2014

O mar a esmo. Eu marasmo...

Navego, não nego.
Reparo e não paro,
Repasso e refaço.
Está em mim o estardalhaço.

Estar de palhaço
De palha à aço.
No fim, é bagaço,
Só sobra o abraço.

No sono despeço,
E nada mais peço.
Meu medo não meço,
Mas também não me apresso.

Apreço sem preço
No meu é desejo,
Manejo e não vejo...
Respiro e almejo.

quarta-feira, 5 de março de 2014

repenso processo

...sucinto, repenso, processo.
Me calo, engulo, gargalo
Retenho, me tento e me nego
Mentindo, tentando... escasso.

ultrapasso no passo lento
revolto na volta, emerge
E meu grito contido, nem cabe.
No todo que submerge...

Suplico silêncio que quieto
Me arrasta raiz resistente
que tenta, chora e não mente.
mas passa de gente à concreto.

Deturba imagem perturba
penso que compro ta pronto.
Respiro o pranto quem planta
do sonho do ar que vem brando.


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Tempo demais

É tempo demais repetindo uma vida cansativa.
É tempo demais exercendo uma função que não acrescenta.
É tempo demais para uma quantia tão pouca
Que paga um tempo mínimo daquilo que me representa.

É tempo demais cozinhando em latas com rodas.
É tempo demais fingindo o que sou.
É tempo demais construindo utopias em rotas.
É escasso o tempo para entender onde estou.

É tempo demais fazendo pros outros.
É tempo demais forçando convívio.
É tempo demais fazendo tão pouco
Daquilo que preciso para me sentir vivo.

É tempo demais produzindo
No tempo de quem decidiu.
É escasso o tempo refletindo
Qual foi o sistema que me pariu.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Utopia minha

Minha utopia é meu recanto,
                   é meu sossego.
Onde eu canto, 
        me aconchego. 
É lá que me perco, me permito,
             me envergonho e me esqueço.
Minha utopia me move, me transporta
                    me comove, me revolta.


É meu lugar nenhum em meio ao mundo todo
É todo meu mundo neste lugar nenhum de todos. 


Minha utopia existe em mim, e em mim eu levo onde for.
Te empresto. 

Só até teu canto algum estiver pronto pra te receber.
Depois, tomo de volta, com saudades de me perder.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Anas

Juliana
Mariana
Silvana
Julia, Maria e Silva nos braços de Ana.

Emiliana
Cristiana
Eliana
Emílis, Cris e Elis como Ana quis.

Tatiana
Adriana
Luciana
Tati, Adri e Luci, sem Ana nunca vi.

Morgana
Diana 
Luana
Amor, dia e Lua... sempre Ana.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Deixaram de nascer Judas

O menino não entendia cada torção de boca ou espremida de testa que davam os adultos. Nem as mãos reativas que desciam pelo peitoral de suas crianças ou que as girava pelas costas levando-as ao seguro campo de força materna. Mas era momentâneo, logo passava... Passava para as crianças.

Judas não tinha amigos na escolas. Acostumou desde cedo com a solidão social, o que favoreceu seu silêncio, seu ouvir, seu observar e sua facilidade para se concentrar, destacando-o das demais crianças de sua idade. Judas se desligava de uma realidade limitada para adentrar ao seu mundo de descobertas e possíveis entendimentos. Tamanha era sua riqueza, sua amplitude vital... Que Ângela era chamada na escola com frequência. Ângela sempre discutia com a professora sobre a violência das atividades propostas numa sala fechada, como manter a continuidade de desenhos feitos por uma caneta esferográfica azul sob linhas retas, ou como as correções soam opressoras com seus grandes X's feitos com suas canetas esferográficas vermelhas. As reuniões terminavam com Ângela falando sozinha pelo corredor enquanto a professora mantinha uma expressão sem esperança; ou com Ângela sentada em frente a mesa da diretora mantendo uma expressão sem esperança. Já familiar ao local.
Em casa, Ângela motivava Judas a ser criança brincando na lama do jardim, desenhando o chão e as paredes com tintas pelo corpo, comendo frutas com as mãos e cascas antes do banho. Judas usava toda a energia contida na escola, já que esta bem colaborava com a privação de seu desenvolvimento e, ainda, o diferenciavam pelo nome. Ângela recém perdera na justiça o direito de matricular seu filho em uma escola após os seis anos de idade, sob o julgamento de abandono intelectual e argumentos de interesses estatais. Mas Judas ia bem! Apesar de seu precoce enfrentamento político-social, Judas mantinha sua curiosidade pelo mundo com questionamentos inimagináveis aos limites escolares.
Ângela sempre soube de algumas consequências quando decidiu por Judas:

- Quanta bobagem!!

Respondia aos familiares e amigos que a instigavam à uma discussão inútil, numa falsa liberdade embasada por conceitos históricos prontos. Ora, Judas fora também um santo naquela mesma história. Os julgamentos vieram à pedradas quando souberam que a gravidez foi impensada. Mulher solteira, quase promíscua, com filho sem pai e de nome Judas!?!. A culparam por condenar seu filho com este nome, por seus pecados carnais. Ângela rio alto quando ouviu esta possibilidade na cabeça de D. Marta pela primeira vez. Mas já não sorria com os demais:

 -Se Jesus perdoou seu Judas, e eu também hei de perdoar o meu!

Em tom de brincadeira, Ângela encerrava a conversa com muitos que assim encerravam a relação.
O fato é, que seu afeto crescia pelo feto que afetou sua vida. E a certeza de seu nome crescia em cada conversa. Ninguém na história havia afetado tanto ao redor ainda em feto.(!!)
Por vezes Ângela chorou em silêncio o peso do mundo em suas costas, e o peso da moralidade empurrada às costas do filho. Algumas vezes arrependia-se do nome sem batismo, mas arrependia-se por isso quando olhava Judas nos olhos. Aquele par de olhos castanhos exibiam um horizonte pleno e o gosto ímpar que a vida oferta àqueles que se arriscam a viver.
Judas e Ângela percebiam que o afastamento das crianças originavam em seus pais, pois nunca Judas perdera um colega antes de fazer parte dos contos infantis que empolgavam a comunicação com os adultos. Até seus nove ou dez anos, algumas crianças até contavam que era melhor não brincarem juntos. Daí aos quatorze, quinze as recusas já partiam dos próprios estudantes, por meio de frases ofensivas que o faziam traidor, não confiável aos mais inseguros.

- Por que sua mãe te chamou assim?

Iara era uma menina sensível, de uma confiança assustadora aos olhos de Judas. Quando uníssonos escolares os acusavam de namoro, Iara pegava na mão de Judas e se retirava como uma adulta:

- Vê se cresce!

Judas não gostava dos rumores, mas nunca hesitou em saltar daquela rocha. Iara o confortava, permitiu conhecê-lo como se não conhecesse outro Judas. Não namoravam, mas eram melhores amigos.
A pergunta de Iara veio a tona, interrompendo o jogo no vídeo-game antigo da menina. Se Iara ficou sem resposta, Janaína conseguiu saciar sua curiosidade numa boa conversa entre mães, regada a vinho tinto na cozinha ao lado.

- Judas é um nome forte. Independente da história, pra mim... Não deixaram de nascer Charles apesar do Maison, nem Guilhermes apesar do De Pádua... E ainda assim, foi o peso da história que me motivou a escolhê-lo. Em um intervalo de mais de dois mil anos, parece que meu Judas confirma sua singularidade.

Entre vinhos e risos, Janaína falou sobre a origem de seu nome e da filha Iara, chegando à sua relação com algumas religiões pagãs e o moralismo cristão. E riram, muito e alto, quando, já lavando a louça, lembraram da possível origem do nome de Ângela.

-Anjos caretas!  

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Julia e Lúcio, entre outros

Eles eram bons. Um casal, aos olhos comuns, tão ordinário quanto a patética mesmice social propõe.
Entre eles, não. Nem Julia, nem Lúcio, buscavam no outro o ser encantado e perfeito que carregasse suas felicidades eternas. Pura ladainha! Buscavam pessoas que os fizessem melhores, que colaborassem com a dura encarada daqueles defeitos profundos, que insistem em aparecer nas horas desconfortáveis. Julia e Lúcio acreditavam no amor amplo, de gaiola aberta sob grama vasta, entre flores suculentas.
Julia e Lúcio se conheceram num curso qualquer. Depois se reencontraram no museu do centro da cidade e de lá, decidiram tomar um sorvete. Sem lactose, para ambos!
As coincidências iam colaborando para que a singularidade de um, esbarrasse nas esquisitices do outro. Logo de cara, o assunto dos dois viajaram o tempo para que conseguissem falar e compreender as palavras, sob os mesmos conceitos, e lá na raiz etimológica da questão, escapavam risadas e questões muito pessoais, que fizeram mostrar um ao outro muito além das roupas sobrepostas e tatuagens indígenas em exibição popular. Tudo fazia ainda mais sentido naquilo que cada um se propôs a ser à si mesmo.
Julia e Lúcio moram juntos há dois anos. Numa casa antiga, no centro da cidade, onde o dinheiro pode pagar. Lúcio é professor, Julia florista. Ganham mal. Mas aprenderam sozinhos que a felicidade é um objetivo diário, não mensal, nem pra vida. E alcançam uma maior amplitude na alma, num botão que se abre ou numa questão esclarecida. Julia e Lúcio, de raízes fortes, fincadas à terra. Mas cabeças e braços que buscam o céu.
Fim de ano, e Lúcio descansa das crianças enquanto Julia se perde entre arranjos. Na sacada, ele observa as pessoas que, engolidas pela cidade, se entregam agora ao raro silêncio das ruas. Na ausência de carros, elas podem talvez ouvir o peso de suas solidões. De cara com uma cidade que não os enxerga, elas, agora, são seus únicos pertences.

- Ju, vamos compartilhar este fim de ano com as pessoas da rua?
- Que grande bobagem estas festas todas...

Julia largou sua tesoura no piso frio, e seguiu à varanda, deixando passos de terra pela sala. Carregava um prato de barro, com pétalas secas oriundas da limpeza do jardim. E lá, decidiram que celebrariam a solidão do casal com as pessoas invisíveis....
Era dia 24. Voltaram do mercado com dezenas de pacotes de macarrões sem ovos, (parafuso, que é mais fácil de comer) temperos, óleo e sal. Lúcio deixou Julia em casa, esvaziou a sacola e correu para pegar o fim da feira. Conseguiu cerca de seis quilos de tomate quase bons, por R$ 3,00. Tomates que seriam dispensados por caírem no chão, ou por terem sido amassados pelas mãos apressadas e rígidas de D. Maria. Tomates tão maduros, de vermelhos surpreendentes, pesados de tanto suco.
Julia bateu os tomates com sal, azeite e um copo de vinho. Acrescentou água para render. No antigo caldeirão, até então inutilizável desde que pertencera a numerosa família de Lúcio, ferveram água para coser toda aquela massa.
Às 20h abriram as portas da garagem vazia, só ocupada por duas bicicletas e vasos vazios, e posicionaram duas mesas na entrada. No caldeirão, a massa já com um fervente molho de tomate e folhas de manjericão espalharam seu aroma competindo com o cheiro de urina das calçadas. A batalha convidou homens e mulheres de rostos comuns, a perguntarem o que era aquilo tudo. Julia serviu um prato e ofereceu ao senhor de barbas brancas, unhas longas e grossas, que sorriu com poucos dentes.

- Pra mim?

Como comeu. Em alguns minutos a porta de Julia e Lúcio estava lotada de pessoas. Já não era o cheiro do molho que prevalecia, nem o sentimento de caridade. O odor de suor e urina ilustravam as conversas honestas e o sorriso sem graça do...:

- Acabou!

Nem por isso as pessoas sumiram. Julia e Lúcio sentaram na calçada e ouviram histórias comoventes. Pouco importava o que era verdade. Aquele momento era tudo real. De famílias ricas e homens perdido, da maldita da cachaça ao veneno confortável do crack, todos ali tinham suas histórias e a necessidade de compartilhar, de se sentir vivo.
Julia chorou de um lado, abraçando a mulher sem nome, cuja maça do rosto estava roxa. Lúcio ria com Sebastião, sábio nordestino que se recusava a voltar pra família humilhado pela metrópole. E entre momentos, ambos conheceram Rodrigo. Menino caiçara, de 23 anos e pele marcada. Olhos cansados de uma vida longa, de estradas solitárias. Rodrigo falava abertamente sobre seu consumo de pedra e a maldição de sua existência. De fala firme e voz rouca, se deixava enfurecer com qualquer piada ou ações desagradáveis de outros bêbados que dividiam a mesma situação de rua. Falava de Deus como se o conhecesse de perto, e sabia que "o retorno de Jesus está próximo". Exibia tamanha segurança, acreditando que tudo não passava de momentos. Momentos egoístas de pessoas do bem ou momentos bons de pessoas egoístas. Tudo fazia sentido em seu discurso, mas dividiu com o casal o peso da solidão:

- Na rua tem todo mundo. Todo mundo se conhece e pá. Mas é na hora de dormir que bate a solidão, ta ligado?!! Cara... é muito foda tá sozinho. Nem é o frio que pega, ou os bicho, a polícia, ta ligado?! É o receio de acordar sozinho de novo. Comê?... bom ou ruim nóis come, agora tê alguém assim, pra conversa mesmo, e um carinho e pá... é embaçado. - Sorrindo, sem jeito.

Rodrigou disse ao casal, que eles não faziam ideia do que era abrir os portões daquele jeito e ouvir as pessoas. Disse com certeza, de que, na maioria das vezes, mais do que comida e roupa, eles precisam mesmo é de ouvidos. Lembrar de quem são, perceber que estão vivos. Rodrigo confessou, já quando os fogos começaram e poucos restaram, que nem havia vontade de fumar a pedra que guardara para o "momento de Jesus". Eram quase 23h.

- É... agora é que as famílias troca os presente e tal. Dá abraço e senta pra comê. Daí eu já preparo minha pedra e vou de encontro com meu Salvador, ta ligado?!! É no colo Dele, estas hora, que dá pra segurar.

Passaram aquela meia noite juntos, os três. Com alguns cães que apareceram assustados pelas bombas, estavam em seis, sete. Rodrigo conhecia todos. Ou os nomeava assim que se aproximavam. Até que a noite silenciou. Rodrigo se despediu, agradeceu novamente e encheu o casal de palavras benditas. Seguiu, com quatro cães o seguindo. Julia e Lúcio entraram com dois dos cães que ficaram. Serviu-lhes água, comida e cobertor. Quase embriagados e em silêncio, deitaram sem trocar uma palavra.
Na manhã seguinte, os cães era o assunto. Xixi aqui, cocô ali, pêlos no ar e rabos abanadores. Julia e Lúcio reconheciam nos latidos a alegria de uma família. Decidiram ficar com o casal. Gárgula e Mandrágora.
Durante o café, Julia quebrou um silêncio cumprido compartilhando alguma fala de Rodrigo. Lúcio sorriu e confessou que não tirara o garoto da cabeça pela noite inteira. Julia apertou os olhos, num foco distante.

- Eu também não...

A semana passou e só dia 31 Julia parou. Gostaria de descansar para que pudessem festejar a noite. Aproveitar um ao outro, os cães, a casa, as flores...

- Podemos chamar alguns amigos.
- Todo mundo viajando...
...
- Vamos chamar o Rodrigo?

Silêncio.

- Será?
- Só ele. Vê se ele quer tomar um banho, comer na mesa....
- Tomar um vinho. Ficar mais de boa?!
- É. De repente ele nem fuma, de novo.
- Pois é... Será?

Lúcio correu pra sacada. Julia ficou pensativa.

- Ele ta por aí?
- Tá nada...

Julia levantou, amarrou o cabelo, pegou a bolsa.

- Vamos procurá-lo!!

Julia e Lúcio andaram pelos quarteirões vazios. Ouvia-se o vento. Conversaram sobre o que de tão especial sentiram com Rodrigo. Lembraram das outras pessoas, uns mais marcantes, outros tímidos, mas Rodrigo... O que havia naqueles olhos pequenos que se mantinha vivo no casal?
Julia e Lúcio passaram o réveillon sozinhos, e sob o efeito do vinho, conversaram honestamente sobre a vida e sobre Rodrigo. Estavam apaixonados. E inutilmente tentavam esclarecer que tipo de paixão era aquela. Necessidade patética comum às mesmices das relações sociais. Logo sacaram no outro que nada daquilo era necessário. Não importava o nome que se dava aquilo ou onde guardariam a ideia de uma nova relação com Rodrigo. Julia e Lúcio queriam mais daquele rapaz em suas vidas. Ninguém sabia como, nem porque. E isso não importava.