Quando a menina chorava era o
tormento que lhe acalmava o coração. Voltara da avenida com uma caixa de leite,
e a menina que dormia sob a árvore gritava-lhe, fria. Envolvida numa colcha
úmida, completava 32 dias de vida e uma força vocal invejável. Com dificuldade,
ela abriu a caixa e molhou os dedos sujos no liquido ralo, levando à boca da
criança. Envolveu-lhe em seu colo, entre os seios vazios e dormiu, antes da
filha. Acordou com o frio, tomou um gole do leite e encarou a menina, que a
cada noite parecia mais branca. Seus lábios roxos tocaram a face desmaiada, e se
espremeram na busca inútil do calor da saliva. Não dormia mais, pois era no silêncio que as
dores se manifestavam. Doía-lhe o ventre, a vagina e outras partes entranhas
que mal conseguia identificar, mas o sangue lhe garantia o erro. O sol tardou,
mas aqueceu os corpos sobre o colchão escasso, pousado à grama e logo aqueles
olhos pequeninos e castanhos despertaram. Caminhava entre os carros, sem nem
mais o objetivo de trocados, não entendia mais quais eram as prioridades. Seu
corpo retorcia por dentro, e o peso da criança aumentava; a luz do sol refletiu
nos carros brancos e a cegou. Levantou uma das mãos, se protegendo da agressão,
e no susto o grito lhe levou ao chão. Uma sombra rápida a acolheu e seu bebê
não estava mais lá. Não estava no asfalto, não estava na grama e seu choro não
lhe alcançava mais. Começou a gritar, mas não havia a quem chamar. Sua filha
não tinha nome, e ela não tinha historia. Na busca, não lembrava mais se era a
pedra ou o leite que esquecera no sol. Correu e chegando ao tronco que lhe dava
abrigo, ouviu o gemido. Era seu bebê! Com o pequeno corpo, molhado de leite
derramado, deitou ao sol, e se permitiu fechar os olhos. Transformava a barulho
dos carros no som das ondas do mar. Era sua lembrança de maior aconchego. Seu
marasmo foi interrompido por um grito estrondoso de um bebê incomodado, molhado
de leite e de urina, entre trânsito e árvores sobreviventes, cólicas e fome e o
desespero a abraçou novamente. E foi em seus braços que caminhou descalça, quilômetros,
até que sua filha cessasse. Já não sabia mais voltar. Perdera seu colchão, seus
chinelos e o que sobrou na caixa de leite. Sangrava entre as pernas quando
cedeu o corpo numa viela quieta, atrás da caçamba. E com o lençol cheirando
azedo, cobriu o rosto da pequena Helena ninando-a pra sempre. Seu dom de transformar
trânsito em mar trouxe aos seus lábios secos uma canção que ouvira certa vez. E
certa de amor e desesperança, cantou: “Dorme minha pequena, não vale a pena
despertar. Eu vou sair, por aí afora, atrás da aurora, mais serena. Dorme minha
pequena, não vale a pena despertar...”.
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