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Ensaio Reticom

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domingo, 16 de março de 2014

Rotina

Maria tem câncer. Mas ela fumou.... fumou a vida toda, desde seus 11, 12 anos. Começou a beber cedo também, deixando a mente se perder entre as obrigações da fase adulta e as confusões internas e inúteis da adolescência. Teve que trabalhar cedo também, para ajudar em casa e pagar seus estudos. Estudos necessários para um emprego melhor, e uma vida melhor.
Maria tem 57 anos, acorda de segunda a sábado às 4h da manhã, faz café e deixa o almoço pronto, estende a roupa que lavou no tanque ontem as 22h., troca a água das gaiolas. Pega um ônibus pequeno e lotado até o trem, entra na fila na catraca por volta das 5h, chega na plataforma e segue a viagem a pé. Troca de trem, entra no metrô, segue na linha vermelha, até outra costura ferroviária para a linha azul. Viaja igualmente em pé com a sacola da marmita e sua bolsa de pertences. Depois da última baldeação, chega no trabalho por volta das 07h30. Troca de roupa, pois seu uniforme preserva suas roupas pessoais e a identifica sua posição no trabalho. Faz café, limpa as mesmas antes dos funcionários chegarem. As 09h30/10h. já terminou tudo e fuma seu primeiro cigarro do dia, no alto do prédio. Olha a vista, e agradece a deus por trabalhar na Av. Paulista! Pensa nos seus filhos, a saudade do marido recém falecido é criada pela culpa, que empurra a sensação de liberdade que a morte lhe entregou: "-Que Deus me perdoe!". Precisa correr! Desce, esquenta a marmita de alguns em banho-maria e a sua própria. Maria almoça as 11h., para não constranger os demais. Não tem fome e sua comida não está quente. Deixa sobrar arroz e feijão, só come a carne. Guarda a marmita, desce à calçada para mais um cigarro, tenta ligar para a filha mais velha, que não atende. "- Esta menina vai perder a hora de novo". Seu filho é motorista, não pode atender. Retorna aos escritório, aproveita os espaços de almoço para limpar tudo, esvaziar os lixos. Abre a porta do patrão maior bem devagar, depois de bater sem resposta. Aproveita ausência e capricha na limpeza. Acende um incenso como mandado, apesar de não acreditar que traga coisas boas, mas deus perdoa. Volta à cozinha, lava as marmitas, pratos e talheres usados. Passa um pano com veja no chão, e o café. Maria gosta quando é enviada ao banco ou correio para o escritório, se sente responsável. Passa a tarde nas filas, paga as contas e leva o troco com a responsabilidade privada do banco central. Agradece de novo. O relógio já acusa quase 17h. Maria pega uma revista e tenta ler sobre o artista da capa, que está em sua novela preferida. Mas o escritório não é lugar para coisas pessoais... Maria leva café às mesas, compra bolachinhas à alguns funcionários que lhe confiam o dinheiro. Às 18h. se veste, repousando o uniforme dobrado na cadeira, sob a mesa da cozinha, não sem antes cheirar e garantir seu uso para o dia seguinte. "-Amanhã preciso lavá-lo!" Maria sai do prédio, segue à estação de metrô e acende mais um cigarro. Mal da tempo de fumar... Entra na fila da catraca e quando chega sua vez, seu bilhete está vazio. Tenta sair, as pessoas xingam e empurram... Maria pede desculpas e assume a fila da recarga. 33 minutos depois, está em pé no trem, competindo os espaços escassos com jovens que descem antes dela. Os que estão sentados dormem e não percebem que ocupam lugares reservados. "Coitados, estão tão cansados". Maria troca de trem e chega à sua última plataforma. Desembarca e aguarda seu ônibus no ponto. Já é noite, quase 20h30 e Maria torce para não perder o começo da novela de novo...
Maria tem câncer. Pode tentar o tratamento a noite, já que não pode parar de trabalhar. Mas precisa deixar de fumar...

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